quinta-feira, 22 de setembro de 2011

EIXO II – Cultura, Cidade e Cidadania

Com o tema "Cultura na Terra dos Parecis", o Conselho Municipal de Política Cultural realizará amanhã e sábado (23 e 24/09), a I Conferência Municipal de Cultura, na Câmara Municipal de Vereadores.

Parte da programação será a discussão dos 5 Eixos Temáticos que orientaram a I Conferência Nacional de Cultura, ocorrida em 2010. Na Conferência Municipal serão debatidos os eixos e sub-eixos e levantadas diversas demandas para constar no Plano Municipal de Cultura.

O resultado final irá subsidiar a Secretaria Municipal de Educação e Cultura e o Conselho Municipal de Política Cultural na elaboração de Deliberação com a proposta de texto, que por sua vez será encaminhada ao Executivo e este à Câmara Municipal.

Terceira de uma série de seis postagens sobre os Eixos Temáticos que orientarão a elaboração de propostas da I Conferência Municipal de Cultura de Campo Novo do Parecis.


EIXO II – CULTURA, CIDADE E CIDADANIA

Foco: cidade como espaço de produção, intervenção e trocas culturais, garantia de direitos e
acesso a bens culturais.

2.1. CIDADE COMO FENÔMENO CULTURAL
Em 2004, cidades e governos locais de todo o mundo, comprometidos com os direitos humanos, a diversidade cultural, a democracia participativa e a criação de condições para a paz, aprovaram a Agenda 21 da Cultura, documento orientador das políticas culturais locais. Entre os princípios desse documento destacam-se: (I) a diversidade cultural é o principal patrimônio da humanidade; não obstante, ninguém pode invocá-la para atentar contra os direitos humanos; (II) há uma profunda relação entre patrimônio cultural e patrimônio ambiental, que constituem bens comuns da humanidade; (III) a liberdade cultural dos indivíduos e das comunidades é uma condição essencial da democracia; (IV) as cidades e espaços locais são ambientes privilegiados de realização da cultura, onde o encontro de tudo o que é diferente e distinto torna possível o desenvolvimento humano integral; (V) o patrimônio cultural, tangível e intangível, é testemunho da criatividade humana e substrato da identidade dos povos; (VI) a afirmação das culturas e o conjunto de políticas postas em prática para seu reconhecimento e viabilidade, constituem fator essencial ao desenvolvimento das cidades e territórios em todos os planos: econômico, político, social e humano; (VII) as políticas culturais devem encontrar um ponto de equilíbrio entre interesses públicos e privados; uma excessiva institucionalização ou a excessiva prevalência do mercado comportam riscos e levantam obstáculos ao desenvolvimento dos sistemas culturais; (VIII) o acesso sem distinções aos meios de expressão, tecnológicos e de comunicação e a constituição de redes horizontais fortalece e alimenta a dinâmica das culturas locais e enriquece o acervo coletivo; (IX) os espaços públicos são bens coletivos e nenhum indivíduo ou grupo pode ver-se privado de sua livre utilização, dentro do respeito às normas adotadas em cada cidade.

Sabe-se que a população brasileira, entre 1940 e 1980, passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana, sob o impulso da migração de um vasto contingente de pobres. Nessas cidades, por muito tempo a população pobre permaneceu excluída das condições básicas de vida, sem acesso à infra-estrutura urbana e às oportunidades de trabalho, cultura e lazer. Em geral, os equipamentos culturais ficavam situados no centro urbano ou nas regiões mais ricas da cidade.

Com a redemocratização do país, muitas administrações municipais implantaram o Orçamento Participativo e essa população passou a ser consultada e a reivindicar a instalação de Centros Culturais. As expectativas em torno desses espaços são de três tipos: (I) ser um lugar de lazer, recreação e cultura localizado próximo ao local de residência; (II) servir como antídoto à sedução que o crime organizado exerce sobre crianças e jovens, por meio da ocupação do tempo livre (extra-escolar); (III) abrir oportunidades de inclusão social (emprego e renda) via atividades artesanais e artísticas. Constata-se, assim, que a cultura está sendo chamada a cumprir papel complementar às políticas educacionais, de segurança e trabalho, o que impõe grandes responsabilidades. Os equipamentos culturais também são utilizados para reabilitar áreas urbanas atingidas pela degradação e pelo esvaziamento. Nesse ponto, o desafio é revitalizar sem discriminar, já que muitos projetos desse tipo implicam na expulsão da população pobre para áreas distantes e mais desvalorizadas.

A instalação de espaços culturais constitui o ponto culminante dos programas de descentralização da cultura, que têm um caráter, ao mesmo tempo, geopolítico e socioeconômico, porque resultam na implantação de equipamentos em regiões da cidade ainda marcadas pela exclusão. Ao avaliar os resultados dos programas de descentralização cultural, é possível constatar que a perspectiva dicotômica – centro/periferia – deve ser substituída por uma nova visão das cidades, que identifica no território urbano uma variedade de regiões, com seus próprios centros e periferias.

2.2. MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Há uma dialética da tradição, isto é, uma tradição só se firma e se mantém como tal na medida em que é capaz de renovar-se, quando ocorrem mudanças históricas que ameaçam sua sobrevivência ou exigem sua transformação. Se não se transforma, a “tradição” está fadada ao desaparecimento. Há uma relação dialética também entre identidade e criatividade. Se a identidade é um sistema de significados que se fundamenta na memória, a criatividade é o processo de produção de novos significados, que sinalizam para o futuro.

O poder público enfrenta um dilema quando é chamado a proteger a diversidade cultural. Historicamente, as políticas de patrimônio cultural vinculam-se às estratégias de legitimação do poder, ou seja, à necessidade que tem o Estado de se apresentar como o representante do interesse geral da sociedade, de todos os seus membros, independentemente de classe social, gênero, etnia, etc. As políticas educacionais e culturais muitas vezes são instrumentalizadas com esse objetivo. Para cumprir a função legitimadora, as políticas de patrimônio costumam construir uma identidade coletiva dos habitantes de determinado território (nacional, subnacional, local), a fim de unir os indivíduos em torno de valores que, supostamente, são comuns a todos.

Para que essa identidade exerça eficazmente o papel legitimador ela deve ser singular (referir-se somente a um território), imutável (ou seja, anti-histórica) e unívoca (portadora de um mesmo significado para todos os membros da sociedade). A pergunta que se coloca é a seguinte: como pode o poder público proteger e promover a diversidade cultural existente no território sob sua jurisdição, se ele necessita, para legitimar-se, de construir uma identidade única e comum no âmbito desse mesmo território? Uma alternativa que se apresenta é considerar como coletiva a soma das diversas identidades grupais, mas, para isso, é preciso abandonar o objetivo de construir uma identidade oficial e ser capaz de operar em um campo no qual podem ocorrer tensões e conflitos entre os diversos movimentos de identidade. Além disso, o poder público tem de estar aparelhado para processar as múltiplas demandas dos atores sociais que lutam pelo reconhecimento de suas identidades. Enfim, trata-se de reconhecer que existe unidade na diversidade, e diversidade na unidade.

Outra questão, também complexa, refere-se à possibilidade de haver distintas interpretações sobre os significados do patrimônio cultural. A distinção entre patrimônio material e imaterial ajuda a compreender esse fenômeno. É fato que o patrimônio material - particularmente o constituído de “cal e pedra” - tende a ser duradouro, variando pouco através do tempo. O patrimônio imaterial, por sua vez, constituído pelos saberes, celebrações e formas de expressão, tende a modificar-se mais rapidamente e a adquirir novos formatos.

Contudo, o que importa mesmo são os valores e significados atribuídos pelas coletividades a esse patrimônio, seja ele material ou imaterial. Desse ponto de vista é possível dizer que todo patrimônio cultural é, em última instância, imaterial, porque afinal significados e valores são coisas imateriais. No entanto, os significados podem variar quando interpretados por um ou outro grupo humano. Todos concordam que Jerusalém tem uma grande significação para a história da humanidade. Mas os valores ali contidos variam conforme o olhar das diferentes religiões, podendo ser até mesmo antagônicos se interpretados por católicos, muçulmanos ou judeus.

Todas essas complexas questões levam a concluir que os espaços de memória, como os museus, arquivos e bibliotecas, têm uma grande importância social e política. A memória coletiva necessita de suportes para manter-se disponível e em permanente ressignificação. Cumprindo a função de guardar, conservar e disponibilizar acervos, essas instituições contribuem enormemente para a extensão dos direitos culturais.

2.3. ACESSO, ACESSIBILIDADE E DIREITOS CULTURAIS
A Constituição brasileira, embora cite explicitamente os direitos culturais, não chega a detalhá-los. Contudo, analisando os vários documentos internacionais da ONU e da Unesco já reconhecidos pelo Brasil, e a própria CF/88, pode-se concluir que os direitos culturais são os seguintes: direito à identidade e à diversidade cultural; direito à participação na vida cultural (que inclui os direitos à livre criação, livre acesso, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural); direito autoral e direito/dever de cooperação cultural internacional.

O direito à identidade e à diversidade cultural, que nasce durante o século XVIII no âmbito dos Estados nacionais, é elevado ao plano internacional após a Segunda Guerra Mundial, quando ocorrem verdadeiros saques ao patrimônio cultural dos países ocupados. Em 1954 a Unesco proclama a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, documento em que os Estados se comprometem a respeitar os bens culturais situados nos territórios dos países adversários, assim como a proteger seu próprio patrimônio em caso de guerra.

O movimento ecológico, que ganhou ímpeto a partir da década de 1970, também contribui para a elevação desse direito ao plano mundial. Em 1972 a Unesco aprova a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, onde se considera que a deterioração e o desaparecimento de um bem natural, ou cultural, constituem um empobrecimento do patrimônio de todos os povos do mundo.

O vínculo entre patrimônio cultural e ambiental é reforçado na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001), que diz ser a diversidade cultural, para o gênero humano, tão necessário quanto a diversidade biológica para a natureza. Por isso deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Situação específica é a dos países onde existem minorias étnicas, religiosas e lingüísticas. Nesse caso, o artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos (1966) garantem aos membros desses grupos o direito de ter sua própria vida cultural, professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

Em 1992 a ONU aprofunda esses princípios na Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Lingüísticas, na qual se formula a obrigação dos Estados de proteger a identidade cultural das minorias existentes em seus territórios. Também cabe destacar a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989). Considerando que a cultura popular deve ser protegida por e para o grupo cuja identidade expressa, e reconhecendo que as tradições evoluem e se transformam, essa Recomendação insiste, basicamente, na necessidade dos Estados apoiarem a investigação e o registro dessas manifestações. Não obstante, temendo que a cultura popular venha a perder seu vigor sob a influência da indústria cultural, recomenda-se aos Estados que incentivem a salvaguarda dessas tradições não só dentro das coletividades das quais procedem, mas também fora delas.
Finalmente, cabe citar a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Esse documento chama a atenção para a necessária integração da cultura nos planos e políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento e reafirma o direito soberano dos Estados de implantar políticas de proteção e promoção da diversidade cultural em seus respectivos territórios.

O direito à livre participação na vida cultural foi proclamado no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam. Analisando documentos posteriores, pode-se subdividir o direito à participação na vida cultural em quatro categorias: direito à livre criação, livre fruição, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural.

A Recomendação sobre o Status do Artista (1980), que trata da liberdade de criação, convoca expressamente os Estados a ajudar a criar e sustentar não apenas um clima de encorajamento à liberdade de expressão artística, mas também as condições materiais que facilitem o aparecimento de talentos criativos.
No que diz respeito à difusão, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) assegura a todas as pessoas a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha. Excetuam-se os casos que envolvem a reputação das demais pessoas e as manifestações contrárias aos princípios fundamentais dos direitos humanos, tais como a propaganda a favor da guerra e a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso.

Por fim, a Declaração do México sobre as Políticas Culturais (1982) postula a ampla participação dos indivíduos e da sociedade no processo de tomada de decisões que concernem à vida cultural. Para tanto, recomenda-se multiplicar as ocasiões de diálogo entre a população e os organismos culturais, por meio da descentralização das políticas de cultura.

O direito autoral foi internacionalmente reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 27) e, mais tarde, na Convenção Universal sobre Direito de Autor (1952). Esse direito permeia a criação, a produção, a distribuição, o consumo e a fruição dos bens culturais, e está na base de todas as cadeias econômicas da cultura. Fundamenta-se na idéia de que a propriedade sobre a criação intelectual e artística é a mais legítima e a mais pessoal das propriedades, porque as obras, além da dimensão material, têm uma dimensão moral, são como emanações da personalidade dos autores. Entretanto, o direito autoral não é puramente individual, porque depois de certo tempo as obras caem em domínio público, ou seja, passam a pertencer a toda a sociedade. O interesse social termina por prevalecer sobre o individual.

Hoje, na sociedade da informação e do conhecimento, o direito autoral vem sendo bastante questionado. Pergunta-se se é possível coexistirem o direito autoral e a rede mundial de computadores (Internet), que permite uma inédita reprodução de textos, sons e imagens. Os especialistas respondem que sim, é possível, mas que para isso o direito autoral terá de renovar-se e até mesmo utilizar-se das novas tecnologias para proteger os autores e suas obras. Nessa renovação o direito autoral terá de harmonizar-se com o direito à participação na vida cultural, para que a liberdade de acesso e a exclusividade de utilização das obras – princípios, respectivamente, da sociedade da informação e do direito autoral – possam coexistir e equilibrar os interesses públicos e particulares envolvidos.

O direito/dever de cooperação cultural internacional foi proclamado na Declaração de Princípios da Cooperação Cultural Internacional (1966): a cooperação cultural é um direito e um dever de todos os povos e de todas as nações, que devem compartilhar o seu saber e os seus conhecimentos, diz seu artigo quinto. Essa Declaração considera o intercâmbio cultural essencial à atividade criadora, à busca da verdade e ao cabal desenvolvimento da pessoa humana. Afirma que todas as culturas têm uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e que é através da influência que exercem umas sobre as outras que se constitui o patrimônio comum da humanidade.

O vínculo entre os direitos à identidade e à cooperação é profundo. Se, por um lado, é reconhecido o direito de cada povo defender seu próprio patrimônio, de outro, esses mesmos povos têm o dever de promover o intercâmbio entre si. Em suma, nenhum país, região, grupo étnico, religioso ou lingüístico poderá invocar suas tradições para justificar qualquer tipo de agressão, pois acima dos valores de cada um está o patrimônio comum da humanidade, cujo enriquecimento se dá na mesma proporção em que o intercâmbio cultural é incrementado.

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