O conto é uma narrativa composta pelo relato de acontecimentos, que perdurou durante toda a Idade Média. Apesar da obscuridade que cerca os romances de cavalaria, as canções de gesta e os ‘fabliaux’, parece que boa parte da literatura medieval bebeu da tradição oral popular, e não o contrário.
Foi somente no século XIX que o conto alcançou estatuto próprio. Dentre suas principais características, uma que parece essencial principalmente nos contos mais tradicionais, diz respeito ao fato de que se o conto não nos instiga a contá-lo de novo, o conto antigo perde todo seu valor e poder de atração. Talvez isso também explique o fato das pessoas afirmarem que “quem conta um conto acrescenta um ponto”.
O fato é que, mesmo contado com outras palavras e que lhe sejam incorporadas algumas alterações ou suprimidas informações, há um motivo que se mantém o mesmo e permite que rapidamente o conto seja reconhecido. Marina Colasanti brinca com essa característica em "Cinco ciprestes, vezes dois", conto representado pelo Teatro Ogan no lançamento da Campanha "Campo Novo do Parecis contra a Pedofilia", no dia 21 de outubro de 2010:
Noite Estrelada (Ciprestes e Aldeia), Vincent van Gogh, 1889
Não era um homem rico. Nem era um homem pobre. Era um homem, apenas. E este homem teve um sonho.
Sonhou que um pássaro pousava em sua janela e lhe dizia: “Há um tesouro esperando por você na cidade dos cinco ciprestes.” Mas quando o homem abriu a boca para perguntar que cidade era essa, espantou o pássaro e o sonho. E despertou.
Durante dias indagou de quantos encontrava se sabiam alguma coisa a respeito de uma cidade com cinco ciprestes. Sem que ninguém tivesse o que lhe responder. Então, como se ainda ouvisse a fala clara do pássaro, vendeu seus poucos bens, botou o dinheiro numa sacola de couro que pendurou no pescoço e, montando no seu cavalo, partiu.
Escolheu a direção do sol poente, dizendo para si que enquanto andasse junto ao sol os dias durariam mais, e ele teria mais tempo para procurar. E junto com o sol subiu montanhas, atravessou planícies, varou lagos e rios.
Da cidade, nem sinal.
Mas ele tinha sonhado com o pássaro, e continuou a procurar. E eis que um dia, quando o sol começava a acariciar-lhe as costas, viu lá longe, erguendo-se como torres na bruma do horizonte, as negras silhuetas de cinco ciprestes.
Sob o puxão involuntário das rédeas, o cavalo estremeceu. Porém, logo esporeado, pôs-se a galopar. E galoparam, galoparam, galoparam.
Espumava o cavalo, suava o homem, quando afinal chegaram à primeira casa. E estando o homem tão cansado, já no final do dia, pareceu-lhe melhor beber a água daquele poço, deitar-se à sombra daquela árvore, para só no dia seguinte, descansado, procurar o tesouro que lhe pertencia.
E assim fez. Adormecendo em seguida.
Dormiu tão profundamente, que não despertou quando um outro cavaleiro chegou, apeou, e aproximou-se dele. Tão profundamente, que não sentiu quando este tocou na bolsa de couro que trazia no pescoço, ainda cheia de dinheiro. E adormecido assim, como poderia perceber que se tratava de temível bandido?
Nada percebeu. Nem sequer quando o outro puxou da espada e, segurando-a por um instante no alto, com as duas mãos baixou-a súbito, decepando-lhe a cabeça.
Quase sorrindo, o salteador abriu a bolsa, contou o dinheiro.
Depois, deixando aos cães o corpo ensangüentado, agarrou a cabeça pelos cabelos e atirou-a ao poço. E no poço, a cabeça foi afundando lentamente. Até chegar ao fundo. Onde os olhos abertos já não podiam ver o cofre apodrecido, de cujas frestas jóias e moedas escapavam, perdendo-se na escuridão esverdeada.
Apresentação de "Cinco ciprestes , vezes dois"
Mas um conto é apenas um conto,
que eu conto, reconto
e transformo em outro conto.
Não era um homem rico. Nem era um homem pobre. Era apenas um homem, E este homem teve um sonho.
Sonhou que um pássaro pousava na sua janela e lhe dizia: “ Há um tesouro esperando por você na cidade dos cinco ciprestes.” Mas quando o homem abriu a boca para perguntar onde ficava essa cidade, espantou o pássaro. E o sonho levantou vôo.
Inutilmente perguntou a todos quantos conhecia, se podiam lhe dar notícias da misteriosa cidade. Ninguém tinha ouvido falar dela, e o máximo que faziam era sacudir a cabeça e dar os ombros. Assim, percebendo que se continuasse onde estava jamais chegaria onde tinha que ir, vendeu sua casa e sua horta, vendeu as roupas que não levava no corpo e, tendo colocado o dinheiro em uma sacola de couro, pendurou-a no pescoço, e partiu.
Escolheu a direção do sol nascente, dizendo para si que ver o sol surgir todas as manhãs, seria como ver a fortuna que também estava surgindo para ele. E juntamente com o sol, levantou-se dia após dia, percorrendo planícies, subindo montanhas, atravessando lagos e rios. Sem que da cidade houvesse sinal.
Mas o pássaro havia falado em seu sonho. E ele continuou a procurar. E eis que uma manhã, quando o sol lhe tocava o rosto com dedos ainda mornos, viu recortar-se no horizonte silhuetas negras e altas como torres, severas silhuetas de ciprestes. Mal podia olhá-las, mergulhadas na luz ofuscante que pairava ao longe como uma névoa.
Ainda assim seu coração pareceu lançar-se para elas, e o cavalo estremeceu sob o puxão involuntário das rédeas.
Galoparam e galoparam e galoparam.
O cavalo espumava, o cabelo do homem grudava-se na testa, quando afinal chegaram mais perto da cidade almejada. O sol agora já estava quase se pondo, e na luz gasta do fim do dia, o homem viu que os ciprestes não eram cinco, como havia pensado, mas apenas quatro.
- Ainda não é esta, disse desapontado, como se alguém pudesse ouvi-lo.
E, esporeando o cavalo, afastou-se.
Não podia saber que na noite anterior uma tempestade havia desabado sobre a cidade. Nem que um raio, certeiro, abatera o quinto cipreste.
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